quarta-feira, 20 de maio de 2015

É a ciência, estúpido!

Por JOÃO MIGUEL TAVARES

Não é aceitável fingir que não existe um problema e desatar a lançar a cartada homofóbica sem analisar minimamente o que está em causa.

Como imaginam, o que nunca me falta todas as semanas é gente a discordar de mim, e muitas vezes por boas razões. Mas o nível de destrambelhamento das reacções ao meu texto sobre a impossibilidade de os gays doarem sangue foi tão elevado que me sinto obrigado a regressar ao tema.

Se as reacções em matilha nunca devem muito à inteligência, aquelas que confundem questões médicas sérias com combates ideológicos são, além de estúpidas, perigosas. Praticamente ninguém se deu ao trabalho de parar 30 segundos para pensar no que estava a dizer ou justificar as razões da sua discordância com algo mais do que o batido argumento homofóbico. Para alguém, como eu, que defendeu publicamente o casamento gay e a co-adopção por casais homossexuais, a acusação é indecente e bizarra.

Miguel Vale de Almeida chegou a resumir no seu Facebook o meu texto da seguinte forma: “No fundo, [ele] diz que eu pertenço a uma subespécie. Deve ser o Homo Sapiens Homo.” Na verdade, a ter de escolher uma subespécie para Miguel Vale de Almeida, eu optaria pelo Homo Sapiens Brutus: a proibição de os gays (ou, para ser mais exacto, de os homens que têm sexo com homens) doarem sangue, seja indefinidamente seja através da exigência de abstinência sexual superior a um ano, está em vigor em países como a Alemanha, a França, o Reino Unido, a Suécia, a Dinamarca, a Finlândia, a Noruega, a Holanda, o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália, e muitos, muitos mais. Há excepções, como a Espanha, mas perante tal lista, que inclui alguns dos países mais liberais do mundo, dificilmente alguém com dois dedos de testa poderá achar que a principal justificação para tal proibição é uma homofobia galopante.

No último surveillance report europeu sobre VIH/sida da OMS, encontramos os seguintes dados de 2013, respeitantes a Portugal: 330 novos indivíduos infectados por MSM (“men who have sex with men”) e 665 através de relações heterossexuais. Muita gente chegou então à brilhante conclusão de que estes números demonstravam que a incidência de contágio era o dobro nos heterossexuais, esquecendo um pequeno detalhe: a dimensão dos dois grupos. Se considerarmos os homossexuais masculinos 5% da população portuguesa, isso significa que a probabilidade de infecção por MSM é dez vezes superior à probabilidade de infecção por contacto heterossexual.  

E quando olhamos para a evolução dos números de novos contágios ao longo dos últimos anos, o que encontramos é isto: 1273 infecções por relações hétero em 2004, contra 260 infecções por MSM no mesmo ano. E no caso de contágio devido à toxicodependência: 608 em 2004 contra 78 em 2013. Ou seja, no intervalo de uma década, o contágio VIH hétero caiu para metade, o contágio devido ao uso de drogas diminuiu 87%, e o contágio por MSM aumentou 27%. Repito: aumentou 27% quando todos os outros caíram. Razão: à medida que a mortalidade por sida diminui, os comportamentos de risco entre gays tendem a aumentar.

Ora, a infecciologia trabalha com dados estatísticos, que valorizam grupos em detrimento de comportamentos individuais, pela razão óbvia de que uns são muito mais estáveis do que os outros. O inquérito é só um dos meios de despistagem. Donde, se há aqui alguma fobia, é em relação à ciência. Mais uma vez: nada disto significa que a questão da doação não mereça ser discutida. Claro que merece. O que não é aceitável é fingir que não existe um problema e desatar a lançar a cartada homofóbica sem analisar minimamente o que está em causa.

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